À Primeira Vista

Ilustração de um cupido dormindo em um jardim


Capítulo I

O Resfriado

O dia amanheceu exatamente igual ao anterior. Os transeuntes, os motoqueiros, os motoristas, os ciclistas, todos sem exceção, dispostos a preencher a sua lacuna. O coletivo passava de hora em hora. A mescla de estudantes com uniformes diferentes transcorria a Ministro João Alberto rumo às escolas. A excitação dos comércios que ansiavam a primeira venda do dia era explícita. Contudo, Ivan (ao contrário do seu bairro: Bela Vista) acordou indisposto naquela manhã, não penteou seus rebeldes cabelos, não escovou os dentes, nem sequer teve vontade de tomar o café da manhã. Preferiu ficar deitado em sua cama.

Notoriamente, o seu quarto assim como a sua aparência precisava de uma arrumação. No entanto, Ivan no auge dos seus dezesseis anos, mesmo com todo o vigor da idade, sentia um desânimo descomunal, sentia um calafrio invadindo o seu corpo que o nocauteava toda vez que ensaiava suas trivialidades.

Ivan estava murcho e no primeiro espirro, sua desconfiança se desfez: “Tô resfriado!”



Capítulo II

Asas Crescidas

Alice levantou ainda amarrotada por causa da noite mal dormida. Ela havia perdido o pai naquele ano, andava desolada e escancarava involuntariamente a todos do seu círculo o seu luto estendido. Portanto, ainda que o sol arregalasse um sorriso para Aragarças naquele dia… para a dita debutante era só mais uma manhã fria.

Sobre os quinze anos de Alice pesava a tristeza e a obscuridade dos dias vindouros. Alice estava saturada de Aragarças. Precisava se livrar da sina que a mãe predestinou para ela: um bom casamento. Na cabeça da viúva só um enlace abonado poderia inflar a sua menininha agora sem o amparo do pai. Mas, a enlutada cria discordava da sua mãe, a jovem sabia que mesmo que o horizonte estivesse fosco, ela precisava bater as suas asas rumo ao desconhecido, qualquer sorte lhe serviria, desde que não fosse um casamento modelado por sua progenitora.

Alice queria uma aventura! Ironicamente sua plumagem já não cabia no limitado Nova Esperança: o setor da sua morada.


Capítulo III

O Frear das Botas

Mesmo golpeado pelo resfriado Ivan resolveu naquela noite viabilizar o seu compromisso de comparecer à festa ao Senhor Bom Jesus. Não que ele fosse devoto a tal padroeiro. Pelo contrário, Ivan nunca foi ligado à nenhuma religião, mas, Aragarças naquela noite não oferecia outras atrações, além do mais, ele havia prometido aos amigos que lá compareceria.

Então, por volta das 20h, Ivan mesmo debilitado, rumou para a igreja. O mancebo descia tranquilamente a rua 6, quando próximo do cruzamento com a rua 5 avistou uma multidão envolta à igreja, tal avistamento freou as botas surradas de Ivan, pois o rapaz nunca se deu bem com multidões, aquele “formigueiro” quase o fez dá meia volta...

“O ninar me vai bem melhor do que a ladainha...” (Sussurrou, antes de avistar os amigos).


Capítulo IV

Parêntese

Quase todas as noites Alice contornava o aeroporto, quebrava inúmeras avenidas, vielas, esquinas... e à deriva montada na sua mountain bike azul, se abrigava nas luzes amigáveis. Não tenho certeza, mas, acho que a errante garota devido à angústia que lhe abatia naquelas nebulosas noites, aportava nos mais variados alpendres apenas para desnuviar um pouco a cabeça em longas conversas. De repente, foi numa dessas visitas que fluiu entre uma lágrima, verborragia ou abraço, um convite à Alice endereçado ao festejo que homenageia o padroeiro de Aragarças. Não sei te dizer com precisão nobre leitor, se houve de fato um convite ou qual foi a verdadeira razão motivadora e embora isso ainda me seja enigmático... saiba que assim como Ivan, ela também compareceu na igreja, todavia, um pouco mais cedo do que o dito rapaz avesso às multidões.


Capítulo V

No Último Degrau

Ivan logo desfez sua apreensão de estar em meio a tanta gente, sobretudo, o desconforto do resfriado que o acometia, o antídoto veio através das conversas animadas dos amigos e a descoberta do comprimido de dipirona que um deles trazia no bolso da jaqueta jeans. Ivan não sabia o que fazia ali, mas em seu íntimo desconfiava que a noite lhe reservava boas novas. Seus amigos eram afoitos, flertavam a torto e direito e assim como ele (diga-se de passagem), também a grande maioria da moçada ali presente, ignoravam sem dor na consciência a religiosidade da ocasião.

A irreverência juvenil camuflava o relógio e tanto Ivan, quanto os amigos, mal percebiam o tempo passar, naquela noite nasceram várias novas amizades, os mais variados assuntos, sobretudo a respeito da história do festejo e de Aragarças, mas, mesmo assim, o afeto negativo ao rito religioso que rolava ainda era o mesmo, ou seja, nenhum.

Deveras, o comprimido de dipirona tomado horas antes por Ivan, começava a perder o efeito. Um desconforto semelhante a febre lhe batia à porta, consequentemente, lhe ameaçava o humor e qualquer iniciativa referente a flertes. Tal desconforto fez com que o agoniado rapaz procurasse alento num canto mais arejado do festejo. Portanto, seguiu sozinho em direção à praça da igreja. Quem sabe e, com muita sorte, ele pudesse encontrar um banco vazio.

De forma irônica, foi exatamente quando Ivan caminhava em busca do amparo da praça, que algo lhe deixou estático! Parada no último degrau da escada de acesso à entrada principal da Igreja Senhor Bom Jesus, destacava a visão mais bonita que Ivan havia visto em toda a sua vida, não era uma alucinação, muito menos a aparição de uma santa. Era Alice!

Trajada num vestido branco... calçada em sandálias baixas, cabelos castanhos longos e soltos... um olhar longínquo... e nos lábios finos: o esboço de um sorriso à amiga que lhe segurava o ombro esquerdo.

Nem banco de praça, nem mal-estar, nem desconforto, nem conforto, nada mais aflorava na mente e no corpo de Ivan. O moço estava encantado.

Foi paixão à primeira vista!


Capítulo VI

O Interrogatório

Após ter avistado aquela moça, Ivan queria saber de quem se tratava, portanto, sem rodeios, febre ou dor foi indagando todos que passavam por ele:

"Você conhece aquela moça?... Sabe o nome dela?... Ela é daqui?"...

Perguntou essas e mais umas outras dezenas de dúvidas a todos os amigos, mas nenhum sabia nada a respeito.

Talvez o melhor a ser feito era Ivan perguntar diretamente a dona da sua admiração, mas, por motivos obscuros ou simplesmente por puro medo de uma negativa se manteve à distância e em plena admiração.


Capítulo VII

A Luz Veio de Jeferson

Que foi Ivan? Por que cê tá assim parado feito bobo? (Perguntou Jeferson ao encontrar o amigo no festejo).

— E aí cara?! (Disse Ivan após passar as mãos no rosto e revelar ao amigo o seu olhar longínquo e esperançoso).

— Cê tá esquisito bicho, diz aí, o que te perturba?

Ivan mal ouvindo o que o Jeferson havia lhe dito, atravessou a observação do amigo disparando a sua repetitiva indagação naquela noite:

— Sabe quem é aquela?

— Quem?

— Aquela ali parada na entrada da igreja?

— Sei. É a Alice. Ela é amiga da minha prima... Ih, mas desencana cara! Ela está de partida, vai pra Goiânia. Sei disso por que ouvi a conversa delas ontem no alpendre da casa da minha tia. Parece que vai morar com o irmão, trabalhar e estudar por lá, uma coisa assim... Mas, cadê a turma cara! Quase que eu não vinha... meu pai é um porre!... Você sabe se a Tati veio?...

A...li...ce! (Suspirou Ivan, enquanto as tônicas de Jeferson se dissipavam no ar).

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