Quando me encontrei com o Raul Seixas no Porto do Baé

Ilustração no estilo cubista de um cantor com violão e lendo um bilhete

Os anos noventa davam os seus últimos suspiros. Principiava o século XXI e a moçada local, assim como hoje, se aglomerava no Porto do Baé. Muitos iam lá porque era ali que extravasavam a oba...oba, disputavam um beijo da menina mais bonita ou do menino mais bonito e, claro, se embriagavam ao som de músicas que eram hits naquela época. Era bom quando havia algum show na recém-inaugurada "arena acústica", mas como é do conhecimento geral, ali só borbulhava e, ainda borbulha, alguma apresentação mesmo, apenas nos sequiosos meses do ano quando surge a aprazível praia. Nos outros meses o que se notava era a correria do Araguaia rumo ao Tocantins e a vastidão de mesas e latinhas nos quiosques, cada um com o seu público específico. Uns ostentavam o sertanejo, alguns o pagode, outros a MPB e, lógico, um ou outro oferecia o futebol ao vivo e via cabo. O rock começava a se emudecer por aquelas paragens.

Minha turma andava meio caída, mutuamente, o relacionamento amoroso e o projeto de viver da arte de muitos de nós, fracassaram. De repente porque o mundo adulto e capitalista batia à porta com voracidade. Alguns arrumaram as malas e fugiram para a capital mais próxima atrás de um emprego e os que ficaram por aqui assim como os que partiram, desfizeram as suas bandas, engavetaram seus inacabados livros, artesanatos e quadros. Enfim, o sonho abaixou a guarda para levar uma bofetada: a busca por grana na laboral competição por detrás de um balcão, sobre os selins das bicicletas, assentos de motos ou num piso de fábrica qualquer... afim do sustento e da conclusão do curso universitário que corresponderia às necessidades do mercado... Alicerce para o futuro. Deveras, a vocação hibernaria!

Havíamos nos desmembrados, agora era cada um por si.

Quando chegaram os primeiros anos do novo milênio. Nas noites mais doídas eu saia pelas mesmas ruas e pontos de encontros na busca de um farol, algo que me direcionasse à antiga sensação, "sintomas de saudade". Entretanto, era inútil, pois mesmo que eu encontrasse alguma pista ou rastro, os mesmos não me levavam a lugar nenhum e sempre dava no mesmo vazio.

Certa noite quando me estrangulava o tédio, senti a necessidade de uma peregrinação involuntária, mas já incrédulo de que iria achar o tal farol que me levasse a um porto seguro e afável e com quase nenhuma cédula de Real no bolso - Sim! O desemprego me socava no estômago naqueles dias - fiquei meio arredio de uma investida noturna, mas, mesmo assim botei a camiseta branca, ajustei o cinto na arriata do jeans surrado, calcei os velhos tênis e rumei sem direção, entretanto, desconfiado de que tal andança daria no Porto do Baé.

Batata! Minutos depois lá estava eu, um estranho no ninho, um turista na sua própria região, com os olhos e os ouvidos mendigando suprimentos a um vazio impreenchível.

Busquei primeiramente o aconchego de um quiosque, saquei a carteira do bolso e arrematei um copo considerável de Campari, todavia, o montante que eu dispunha só daria para uma carga de Campari com direito a uma bagatela em forma de troco. Eu precisava aproveitar a única munição para um tiro certeiro, não poderia mais uma vez ser estrangulado por uma gravata do tédio. Mas, o bicho (tédio) é danado e começou a me segurar pela gola da camiseta tentando apertar a minha garganta, enquanto me golpeava com socos e pontapés. Chutando-me para baixo, tão para baixo que fui parar no último degrau da escadaria do Baé junto ao Araguaia com vista para a Choupana's, um refúgio em forma de choperia que abrigava e monetizava os bons músicos da cidade.

Eu tinha ainda meio copo de Campari e iria aproveitá-lo para me infiltrar junto aos iguais nas mesas da dita choperia, quatro dezenas ou mais de dândis ali presentes, sobretudo, insensíveis às obras do artista que ali tocava, ao menos eu ouvia as canções e tinha em punho a vermelhidão etílica num copo descartável. Portanto, uma ocasião perfeita para um sacolejo no aborrecimento que me acompanhava há tempos.

Cheguei firme! Sentei-me numa mesa próxima ao músico, ignorei o chato garçom e fiz vista grossa para o tal do couvert artístico da casa. O que eu queria mesmo era matar o tédio, abraçar a boa música, desfraldar a poesia e desbancar a nostalgia...

Indagou-me pomposamente o garçom mais uma vez (a terceira, desde que cheguei):

— O senhor deseja beber algo?

— Por enquanto não meu caro! Respondi-lhe, despreocupadamente, mais uma vez.

Ele entortou a cabeça para direita e me sorriu um sorriso desconfiado e logo se retirou, todavia, de novo, me fitando com os cantos dos olhos. De certo a minha presença ali lhe incomodava e isso ficava cada vez mais evidente para mim quando eu o flagrava aos cochichos com a moça do caixa.

No momento em que eu me preparava para uma saída à francesa, estalou no âmago do meu orgulho um brinde aos ausentes, uma saudação aos que eu queria que estivesse ali ao meu lado. "Carpe diem" — Gritei em silêncio — levantei meu Campari em direção à Goiânia e à Cuiabá e afugentei o fantasma que me acompanhara naquela noite até aquele instante em só gole. Chamei o garçom e pedi finalmente o cardápio. Com o que havia me sobrado de dinheiro na carteira, ainda daria (na minha soma e sem pagar o couvert artístico) para tomar uma cerveja. E assim foi feito. Comecei a dar pequenos goles no copo, agora de vidro e, apreciei a eclosão das canções.

Dali em diante comecei a aplaudir com veemência o músico que se apresentava na choperia, o que de fato não me foi difícil, o cara era bom! Tocava de tudo, muitos clássicos da MPB, rock dos anos 80 e pouquíssimas canções sertanejas e/ou modinhas à época. Apesar de não o conhecer, estava eu, diante de um dos meus. Percebi então, que os meus aplausos o deixavam contente e mais à vontade em saber que em meio a soberba da plateia, havia um espectador que de fato estava curtindo a sua obra.

Durante o último copo de cerveja ao invés de um brinde rumo à Goiânia e à Cuiabá resolvi escrever em um guardanapo um pedido ao músico e essa seria a minha saideira, respectivamente, uma outra homenagem aos amigos ausentes:

"Saudações meu caro!
Notoriamente percebe-se que a plateia é indiferente à poesia e à arte. Entretanto, não se esmoreça, dias melhores ainda hão de vir (lux quae sera tamem). O seu show nessa noite está sendo esplêndido. Acredite nobre artista, acabou de ganhar um admirador.
Sucesso!
Ah, se puder toca Raul!"

Foi então que aconteceu algo surpreendente, após o profissional da música ler o bilhete, veio uma sucessão intercalada entre uma canção e outra do repertório que o mesmo havia preparado, as canções do saudoso Raul Seixas! Quando houve uma pausa, o dito artista veio ao meu encontro, cumprimentou-me e após uma curta conversa, sobretudo, o meu relato detalhado sobre o que me levou a estar ali naquela noite. O camarada que levantou um brinde aos meus longínquos amigos sem saber. Fez-me uma outra gentileza:

— Cara! Eu não bebo, mas a casa me permite uma quantidade de dez cervejas livres por noite. Se quiser, tem o meu aval para bebê-las. Pode deixar que avisarei ao garçom. Só não ultrapasse a décima. Ei! Não se preocupe com o couvert!

Naquela noite a neblina se dissipou um pouco e pude valorosamente avistar o farol que eu tanto procurava, um alento para a minha solidão e nostalgia. Homenageei os meus amigos ausentes... fiz mais uma nova amizade nos moldes dos velhos tempos e provoquei uma choperia inteira a dividir comigo o meu lado Raulseixista, inclusive, um garçom metido a besta.

... Da mesma forma que o Araguaia se conformou com os altos e baixos até o Tocantins, eu demorei, mas, me ajustei aos infortúnios e alegrias que iam se apresentar nos anos que se seguiram...

Dos amigos que ficaram por aqui, hoje em dia quase não os vejo. A maioria são funcionários públicos ou trabalham numa empresa importante na cidade, outros estão desempregados ou tem seus próprios negócios, entretanto, fizeram da arte um hobby. Dos que partiram para Cuiabá, sei que um fundou um bar de rock famoso por lá, outros assim como os que ficaram por aqui também são funcionários públicos e/ou acadêmicos e também usam seus talentos como hobby. Já sobre a única amiga que se enveredou para Goiânia (Alice), pouco sei. Entretanto, chegou-me há alguns anos, a informação de que a mesma é apaixonada por animais, sobretudo, cachorros. O que me leva a crer que ela deve ter fundado um canil, trabalha em uma clínica veterinária ou coisa do tipo.

Presentemente, nesses adultos anos, onde o grisalho invade os cabelos, as noites não são mais tão dolorosas, a neblina não aparece com tanta espessura e os redutos são só simples choperias. Eu escrevo sobre aqueles dias que muitos consideravam oba...oba e efêmero, mas que para mim, ainda são um farol.

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