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IZALTINO R. C. NETO |
Não sei se você, caro leitor, tem a mesma convicção de amizade que eu, mas, convenhamos essa coisa tão abstrata e concreta (a amizade) é um dos mais preciosos tesouros da vida. Um vínculo que transcende o tempo e o espaço. A conexão que nos faz sentir vistos, ouvidos e compreendidos. Um relacionamento que nos permite compartilhar alegrias e tristezas, sonhos e desafios e, claro, nos ajuda a crescer e a evoluir como seres humanos.
As palavras que acaba de ler meu caro leitor é apenas para realçar mais uma entrevista neste blog. Desta vez com um cara especial na minha vida. Meu (pode-se dizer) irmão: Izaltino Rodrigues da Costa Neto.
Conheci o Izaltino nos idos de 1993 em meio a junção de amigos das antigas e de outros que se inseriam naturalmente nas escolas, ruas, festas e lanchonetes de Aragarças, Pontal do Araguaia e de Barra do Garças. Mas, como bem sabemos a vida segue o seu curso e como deve ser amadurecemos e quase sempre nos distanciamos fisicamente para a materialização dos sonhos, vocação ou simplesmente, para ganhar dinheiro!
O Izaltino rumou em direção às várzeas mais distantes, ou melhor, para Várzea Grande - MT e hoje aquele carinha bom de escrita, desenho e bola, com bom gosto para música e companheiro de aventuras é doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Mestre em Antropologia Social também pela UFMT, tem especialização em Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Cuiabá – FUAC e graduação em CST Gastronomia pela Unic Pantanal.
Antes que comece a ler a entrevista nobre leitor é bom que saiba que pelo fato da distância entre o Izaltino e eu, a mesma foi realizada em caráter de questionário, portanto, não estranhe a polidez dos textos (leia-se: perguntas e respostas).
Posto isto, vamos à entrevista:
Uanderson Barros: Você se intitula como: gastrônomo-antropólogo. Por quê?
Izaltino Rodrigues da Costa Neto: Baseio-me nos ensinamentos de Alexsânder Nakaóka Elias, onde ele nos elucida o termo “fotógrafo-antropólogo”. Em sua tese de doutoramento “Dupla imagem, duplo ritual: A Fotografia e o Sutra. Lótus Primordial, ao estabelecer ser um “fotógrafo hífen antropólogo” (fotógrafo-antropólogo) e não um “fotógrafo barra antropólogo” (fotógrafo/antropólogo) demonstra a existência de um importante elo entre os dois ofícios. Ao utilizar o “hífen”, procura evidenciar que as coisas são colocadas e estabelecidas em relação, uma e outra. De modo que se utilizasse a “barra”, existiria uma separação ou divisão evidente entre os componentes, fotógrafo ou antropólogo. Considera-se ainda que a posição dos termos, fotografo e depois antropólogo, e não antropólogo e depois fotografo, faz jus por sua constituição primeiramente como fotografo e depois antropólogo, ao longo de seu doutorado. Assim, em semelhante analogia, trago o termo “gastrônomo-antropólogo” nas mesmas condições, onde tenho, onde veio primeiro minha formação em Gastronomia e só depois o título de Mestre em Antropologia.
UB: Como a sua formação em antropologia Social influenciou sua percepção sobre a cultura e a identidade de Aragarças?
IRCN: A antropologia, segundo a linha de reflexão proposta por Tim Ingold (2021), configura-se como uma disciplina de investigação ampla, comparativa e crítica, que busca compreender as condições e possibilidades da existência humana no mundo contemporâneo. Dito isto, sem dúvidas que a antropologia me proporcionou um aprofundamento na percepção da cultura e identidade de Aragarças, evidenciando-as como um constructo dinâmico, continuamente reconfigurado por interações históricas, sociais e políticas.
Devo sublinhar que no decorrer desse processo, tornou-se fundamental o exercício da escuta qualificada das vozes locais, bem como a análise crítica das práticas cotidianas e das estruturas de poder que modulam as dinâmicas comunitárias. Assim mantenho um compromisso constante com a autorreflexão, reconhecendo que minha posição como pesquisador exige sensibilidade, ética e um respeito genuíno pelas narrativas e experiências que constituem a essência de Aragarças. Afinal, “numa ciência em que o observador é da mesma natureza que seu objeto, ele próprio se torna parte da sua observação” (Lévi-Strauss, 2003 [1950]). Com essa consciência, busco compreender não apenas a realidade estudada, mas também o impacto da minha própria presença na construção do conhecimento.
UB: Quais são as principais características culturais que você identifica em Aragarças e como elas se manifestam na vida cotidiana?
IRCN: Posso afirmar, sob um olhar antropológico, que Aragarças reflete uma cultura híbrida, fruto da interação entre diferentes grupos, como os povos indígenas, migrantes nordestinos, sulistas e goianos, além das influências da colonização portuguesa. Essa diversidade molda uma “identidade singular”, que mescla tradições regionais com elementos sincréticos, manifestando-se de maneira marcante na vida cotidiana.
Essas manifestações estão presentes nas festividades populares e são expressões marcantes dessa fusão cultural, seja nas celebrações religiosas, como as festas de padroeiros e santos, na sua culinária, ou nos eventos sazonais ligados ao rio Araguaia (retornarei ao rio mais adiante) ou em sua religiosidade.
Nessas ocasiões das festividades, podemos ver distintos ritmos e práticas se convergindo, como exemplo, um forró nordestino, as danças indígenas e as procissões católicas em uma experiência coletiva que fortalece os laços comunitários.
Paralelamente a culinária local também é um reflexo da pluralidade cultural da região. Pratos com o peixe do rio Araguaia, como o pintado e cachara, incorporam técnicas tradicionais indígenas (assá-los na folha de bananeira por exemplo) enquanto elementos nordestinos, como o cuscuz ou carne seca, enriquecem a alimentação cotidiana. A coexistência de sabores vindos de diferentes origens ressalta a história das trocas culturais que acontecem em Aragarças.
Ainda no comércio e nas feiras livres, em especial a Feria da Lua, as interações sociais revelam um mosaico de sotaques, expressões e modos de ser. A hospitalidade dos moradores e a vivacidade das conversas reforçam a identidade social da cidade, onde múltiplas referências culturais coexistem e se renovam.
Faz-se necessário, aqui, um pequeno destaque ao rio Araguaia, que ocupa uma posição central na vida de Aragarças, sendo muito mais que um recurso econômico – ele é um símbolo cultural que estrutura a identidade local. Pescadores organizam sua rotina em torno do rio, praticando técnicas artesanais que são transmitidas ao longo das gerações. Vemos ainda, um turismo sazonal que durante a temporada de praias, de julho a agosto, o Araguaia atrai visitantes e impulsiona festividades locais, onde shows regionais e as próprias barracas nas praias, reafirmam o vínculo da população com o rio. Além disso, narrativas e simbolismo contam histórias sobre o rio, e lendas de seres aquáticos, como o boto,, circulam em conversas informais, conectando o cotidiano a um imaginário cultural.
A religiosidade em Aragarças manifesta um sincretismo característico do Brasil Central, combinando elementos do catolicismo popular, influências evangélicas e vestígios de práticas indígenas e afro-brasileiras. Essa diversidade de crenças reflete uma espiritualidade plural, onde diferentes tradições convivem e se reinterpretam continuamente.
De igual modo, é válido destacar que, como outras cidades do interior, Aragarças enfrenta desafios diante da modernização e da globalização. O impacto das novas mídias e tecnologias influencia novos hábitos e valores, criando um contraste entre gerações. Enquanto os mais jovens se conectam a culturas globais, as gerações mais velhas preservam costumes regionais, gerando um dinamismo constante na construção da identidade local. Essa tensão entre tradição e mudança reflete o modo como Aragarças continua se transformando e buscando não perder suas raízes culturais.
"Trago o termo gastrônomo-antropólogo
nas mesmas condições,onde tenho,
onde veio primeiro minha formação
em Gastronomia e só depois o
título de Mestre em Antropologia."
IRCN: Para uma análise da formação da identidade local de Aragarças, em uma perspectiva antropológica, considerando sua história de fundação e desenvolvimento, exige o uso do método comparativo (Lévi-Strauss, Evans-Pritchard), que permite compreender o caso específico da cidade, compará-la com outros contextos e identificar princípios universais que moldam identidades sociais.
Nesta vertente, temos que a formação de Aragarças, exemplifica um processo de ocupação territorial e construção identitária que reflete tensões entre modernização estatal e tradições regionais, um fenômeno comparável a outras cidades brasileiras nascidas de projetos de integração nacional. Fundada no contexto da Expedição Roncador-Xingu e da Fundação Brasil Central, iniciativas do governo de Getúlio Vargas na década de 1940, Aragarças integrou a Marcha para o Oeste, uma política que visava incorporar o sertão goiano ao projeto de modernização do Brasil. A cidade surgiu como um polo estratégico, atraindo pioneiros, militares, trabalhadores e sertanejos, que juntos forjaram uma identidade híbrida, como já citado, marcada pela coexistência de progresso e tradições locais.
Essa dualidade manifesta-se, à época, na organização espacial de Aragarças, que reflete as contribuições e conflitos entre diferentes grupos sociais. A parte Alta foi pensada para acolher a elite administrativa e exibir os símbolos do progresso estatal, com construções como o hospital, o Hotel Getúlio Vargas e o aeroporto, que transmitiam uma imagem de ordem e modernização. Por outro lado, a parte Baixa, localizada às margens do rio Araguaia, era o espaço de garimpeiros, ribeirinhos e sertanejos, cujos costumes tradicionais, ligados à vida simples e à natureza, contrastavam com o projeto de modernidade do governo. Essa divisão espacial não apenas delineava hierarquias sociais, mas também evidenciava a tensão entre a modernização imposta de cima e a resistência das culturas locais. Essas identidades emergem da negociação entre forças globais (modernização, planejamento estatal) e locais (práticas culturais tradicionais).
Elucidando a questão e comparando Aragarças com outras cidades brasileiras, como Brasília ou Goiânia, observa-se um padrão recorrente: projetos estatais de ocupação territorial frequentemente geram cidades divididas entre a modernidade planejada e as práticas tradicionais das populações locais. Em Brasília, por exemplo, o plano piloto de Lúcio Costa representava a utopia modernista, enquanto as cidades-satélites abrigavam trabalhadores migrantes cujas práticas culturais desafiavam a homogeneidade planejada. Da mesma forma, em Goiânia, a setorização modernista contrastava com os bairros populares, onde tradições goianas persistiam. Esses casos revelam um padrão geral: a modernização estatal no Brasil tende a criar dicotomias espaciais e culturais, nas quais o progresso planejado coexiste com formas de vida que resistem à uniformização.
Contudo, introduzo aqui um adendo de grande relevância: o impacto da presença militar e expedicionária foi decisivo na configuração da cidade, impondo uma lógica de ocupação que consolidava Aragarças como um ponto estratégico na integração do Brasil Central. A militarização do espaço, associada à construção de infraestrutura e ao estímulo à colonização, reforçou a narrativa de progresso, ao mesmo tempo em que silenciou certos grupos historicamente marginalizados, particularmente os povos indígenas que habitavam a região antes da chegada das expedições.
Sob os argumentos acima apresentados, é lúcido dizer que a identidade local de Aragarças, portanto, é atravessada por tensões entre tradição e modernidade, presença e exclusão. Enquanto celebrações, espaços simbólicos e práticas econômicas reafirmam a memória dos pioneiros e a diversidade cultural, as marcas das exclusões históricas também são evidentes. A ocupação do território significou a reconfiguração das dinâmicas sociais e ambientais, e a construção de uma identidade urbana que, apesar de buscar integrar diferentes influências, carrega consigo os vestígios das desigualdades e dos deslocamentos forçados que acompanharam a expansão da fronteira brasileira. Assim, compreender Aragarças exige um olhar atento às camadas de sua história, reconhecendo tanto os processos de formação identitária quanto as contradições que permeiam essa trajetória.
"A identidade cultural de Aragarças
é um rico mosaico, tecido ao longo do
tempo por influências que moldam
a vida, os valores e as relações
da comunidade."
IRCN: A antropologia, ao lançar seu olhar crítico sobre Aragarças, permite compreender as dinâmicas sociais e culturais que estruturam a vida comunitária. Uma abordagem relativista e reflexiva desvela os processos de construção identitária, evidencia as relações de poder e dá voz a grupos historicamente marginalizados. Em Aragarças, isso significa explorar a centralidade do rio Araguaia, o hibridismo cultural e os impactos da colonização, ao mesmo tempo em que se engaja com desafios contemporâneos, como o turismo, a sustentabilidade e globalização.
A análise das relações de poder é fundamental para entender como certas desigualdades se perpetuam nas cidade, incluindo Aragarças. Inspirada pelas contribuições de autores como Pierre Bourdieu e Michel Foucault, a antropologia examina atentamente como estruturas sociais e históricas moldam a distribuição do capital simbólico e material. No caso de Aragarças, a Marcha para o Oeste e a fundação da cidade são eventos que redesenharam o território e excluíram populações indígenas da narrativa oficial. Ao investigar essas dinâmicas, a antropologia revela como certos grupos foram historicamente apagados e busca restaurar suas contribuições culturais.
Retornando ao turismo sazonal no rio Araguaia, embora represente uma importante fonte de renda, também intensifica desigualdades, beneficiando elites locais enquanto populações ribeirinhas enfrentam restrições ao uso do próprio rio.
Um estudo antropológico sobre essas tensões permitiria visibilizar as experiências dos grupos “subalternos” e trazer novas perspectivas para uma gestão sustentável do território.
Além de descrever e analisar fenômenos sociais, a antropologia pode desempenhar um papel ativo na promoção de práticas comunitárias voltadas à preservação cultural e sustentabilidade. A documentação de saberes tradicionais relacionados ao uso do rio, por exemplo, seria de grande valor para evitar sua perda frente à pesca predatória e à poluição.
Projetos etnográficos, como oficinas de história oral, poderiam fortalecer a autoestima cultural de comunidades indígenas e ribeirinhas, valorizando suas narrativas e tradições. Ao dar visibilidade às vozes marginalizadas, a antropologia também pode contribuir para a formulação de políticas públicas mais inclusivas e justas, promovendo um diálogo entre gestores locais e as populações historicamente invisibilizadas.
Dessa forma, a antropologia nos permite compreender e também transformar as dinâmicas sociais e culturais de Aragarças, promovendo um olhar mais sensível sobre os processos históricos que definem a identidade local e impulsionando ações concretas que valorizem a diversidade e enfrentem desafios contemporâneos.
UB: Você nota alguma influência de outras culturas na formação da identidade de Aragarças? Se sim, quais são essas influências e como elas se manifestam?
IRCN: A identidade cultural de Aragarças é um rico mosaico, tecido ao longo do tempo por influências que moldam a vida, os valores e as relações da comunidade. Raízes indígenas, traços sertanejos, heranças coloniais e toques globais se entrelaçam, dando forma a um lugar único. Os povos indígenas, estão na essência dessa história, presentes muito antes da cidade existir. Apesar dos desafios impostos pela colonização e pela modernização, sua influência segue viva. O saber ancestral, como as técnicas de pesca artesanal e a navegação no rio Araguaia, mostra como os conhecimentos indígenas se adaptam à vida ribeirinha de hoje. Histórias e mitos sobre seres e divindades, compartilhados em rodas de conversa, mantêm acesa a ligação profunda do povo com o rio e a natureza, enchendo o imaginário local de simbolismo e pertencimento. Ainda que menos visíveis no espaço urbano, elementos da arte e do simbolismo indígena podem ser observados em manifestações culturais e festividades.
A influência sertaneja, ligada à identidade goiana e à vida rural do interior, também se faz presente em Aragarças, fortalecendo a relação da cidade com a terra e o trabalho agropecuário. Destaca-se a música sertaneja, com suas variações do estilo raiz ao universitário, que ocupa um lugar de destaque em eventos locais, como os shows realizados durante a temporada de praias. Na mesma direção desta composição identitária, as festas folclóricas incorporam tradições como a catira, reafirmando os laços históricos da cidade com as expressões culturais do interior goiano. Além disso, a economia baseada na pecuária e na agricultura familiar imprime um ritmo de vida comunitário sustentado por práticas como a feira (da Lua), onde além da comercialização de produtos e alimentos, este espaço que pode ser entendido como uma rede social e ao mesmo tempo um sistema cultural, ocorrem trocas culturais, de conhecimentos, informações, experiências e também se posta como lugar de conexão e redescoberta fortalece essa rede social e os vínculos de pertencimento.
A marca da colonização portuguesa, consolidada pela Marcha para o Oeste e pela Fundação Brasil Central, estruturou aspectos fundamentais da organização social e religiosa de Aragarças. O catolicismo popular, com devoção a santos como o padroeiro da cidade Senhor Bom Jesus e Nossa Senhora Aparecida, continua a exercer influência nas celebrações religiosas e nas práticas devocionais do cotidiano, visíveis em procissões, novenas e altares domésticos (minha mãe tem um). A configuração urbana da cidade ainda remonta ao modelo colonial, com praças e igrejas funcionando como centros de sociabilidade. Elementos linguísticos evidenciam a continuidade de padrões culturais herdados dos primeiros colonizadores e adaptados à realidade regional.
Por fim, as transformações trazidas pela globalização produziram novas camadas à identidade cultural de Aragarças, sobretudo entre os segmentos mais jovens da população. O acesso a mídias digitais e redes sociais ampliou a circulação de referências externas, permitindo a incorporação de estilos musicais diversos na cultura local. O consumo de marcas globais e modas urbanas revela um contraste geracional entre a juventude conectada a tendências internacionais e as gerações mais velhas, que preservam elementos tradicionais da “identidade sertaneja”. O próprio turismo, especialmente durante a temporada de praias no Araguaia, intensifica esse processo ao trazer visitantes de diferentes regiões e países, cujas expectativas e hábitos influenciam a oferta de serviços e a hospitalidade da cidade.
O resultado é uma identidade cultural dinâmica, marcada por continuidades e rupturas, onde diferentes influências se entrelaçam e se reinventam constantemente. Aragarças, assim, se constitui como um espaço de interações múltiplas, onde tradição e modernidade dialogam e redefinem, continuamente, o sentido de pertencimento e memória coletiva.
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IZALTINO R. C. NETO EM INCURSÃO NA FEIRA DA LUA |
UB: Como a sua experiência em Cuiabá influenciou sua percepção sobre Aragarças e sua cultura?
IRCN: Minha vivência em Cuiabá, onde a cidade é marcada por sua urbanização intensa e diversidade cultural, moldou minha abordagem a Aragarças, também a partir de um prisma comparativo, revelou os contrastes e conexões entre esses espaços. A identidade ribeirinha, rural e sincrética de Aragarças emerge como uma expressão singular dentro das dinâmicas do interior do Brasil, mas que não está isolada das redes socioculturais que perpassam a região.
No entanto, minha familiaridade com a complexidade urbana cuiabana aponta inicialmente para um viés na leitura das práticas locais e tradicionais de Aragarças, demandando uma imersão etnográfica para compreender suas dinâmicas próprias sem reduzi-las a meras oposições ao urbano. Além disso, a exposição às desigualdades em Cuiabá me tornou particularmente sensível às vozes frequentemente esquecidas em Aragarças, como os indígenas e os ribeirinhos, cujas tradições, saberes e vivências constituem um patrimônio cultural e histórico inestimável, frequentemente esquecidos ou apagado nas narrativas predominantes.
Assim, minha trajetória em Cuiabá influenciou sim minha percepção sobre Aragarças, e também reforçou minha habilidade para uma abordagem antropológica crítica e contextualizada, capaz de captar os fluxos, tensões e pertencimentos que configuram a identidade do lugar.
UB: Quais são os principais desafios culturais e sociais que Aragarças enfrenta atualmente e como a antropologia social pode ajudar a entender e abordar esses desafios?
IRCN: Bem, hoje em dia estou geograficamente afastado de Aragarças, minha percepção dos desafios culturais e sociais da cidade baseia-se em conversas esparsas com parentes que lá residem e em notícias que acompanho de longe, o que limita minha visão, mas ainda assim, permite esboçar algumas reflexões.
Pelos relatos, Aragarças enfrenta dificuldades em preservar sua identidade cultural frente às influências externas. Parentes e notícias mencionam que práticas tradicionais, como a pesca artesanal e as histórias sobre o rio Araguaia, estão perdendo espaço, especialmente entre os jovens, que, segundo eles, preferem músicas e modas urbanas divulgadas nas redes sociais. Diante desta questão dos jovens, moradores mais velhos lamentam que muitos querem deixar Aragarças para estudar ou trabalhar em cidades maiores, como Goiânia ou Cuiabá, atraídos por oportunidades que não encontram localmente. Eles notam um desinteresse crescente por atividades tradicionais e um apego às redes sociais, que os conecta a um mundo globalizado, mas os afasta da comunidade. Isso cria conflitos com os mais velhos, que valorizam as tradições, e alimenta temores de que a cidade perca sua vitalidade cultural e humana no futuro (próximo).
Outro desafio que chega até mim, são as festas populares, como as que envolviam danças como a catira e Folia de Reis, parecem estar sendo substituídas por eventos puramente comerciais, como shows sertanejos, que atraem turistas, mas, conforme percebe-se, deixam os mais velhos preocupados com a diluição da cultura local. Essa mudança ameaça a coesão da comunidade, que sempre se orgulhou de sua ligação com o rio e o modo simples de viver.
Revistando a questão do turismo sazonal, que é outro ponto de tensão, particularmente na temporada de praias, e ao retomar a análise antropológica sobre esse turismo em Aragarças, observa-se a importância de compreender suas implicações em múltiplos níveis. As tensões entre progresso e preservação, lucro e inclusão, reforçam a necessidade de estratégias que garantam uma abordagem equilibrada e respeitosa às dinâmicas locais. O turismo, ao ser novamente abordado, revela que seu impacto vai muito além da economia, influenciando profundamente as relações sociais e os modos de vida das populações tradicionais. Vê-se que o grande número de visitantes gera renda, mas também traz problemas, como lixo nas praias fluviais e certas restrições ao acesso dos moradores ao rio. Notícias locais que leio reforçam isso, apontando poluição e sobrepesca como impactos ambientais crescentes. Há também relatos de atritos culturais, com turistas trazendo hábitos urbanos que nem sempre respeitam a sociabilidade da cidade. Há evidencias que sugerem que os lucros do turismo beneficiam mais algumas famílias influentes, enquanto os , sentem-se excluídos, com suas tradições desvalorizadas. Essa dependência do turismo, pelo que percebo, preocupa os moradores quanto à sustentabilidade do rio Araguaia e manutenção da cultura local.
A antropologia, mesmo com uma visão longínqua, pode oferecer caminhos para entender e enfrentar esses desafios. Conversas mais profundas com moradores, como as que um antropólogo poderia conduzir, ajudariam a captar o que os ribeirinhos, indígenas e jovens pensam sobre essas mudanças. Tal como, ouvir os pescadores, feirantes ou indígenas poderia revelar o significado das práticas tradicionais e como protegê-las.
Da mesma forma, entender as aspirações dos jovens esclareceria por que muitos querem partir e o que poderia mantê-los engajados na cidade. A antropologia também está pretensa a valorizar a cultura local, tratando saberes populares como patrimônio, não como algo ultrapassado, e buscar formas de integrar tradições às redes sociais que os jovens usam. Por fim, ao destacar as desigualdades no turismo e propor iniciativas comunitárias, como projetos de preservação cultural, a antropologia poderia ajudar Aragarças a fortalecer sua identidade. Apesar da minha distância, vejo que essas ferramentas poderiam apoiar a cidade a enfrentar suas mudanças mantendo sua essência interiorana e acolhedora.
O relativismo cultural legitima as
práticas de Aragarças, evitando
modelos de desenvolvimento
que desrespeitem sua identidade local.
UB: Você acredita que a antropologias social pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e a preservação da identidade cultural de Aragarças? Se sim, como?
IRCN: Sim, a antropologia pode contribuir significativamente para o desenvolvimento sustentável e a preservação da identidade cultural de Aragarças.
Como visto até aqui, a cidade é marcada por seu hibridismo cultural e história vinculada à Marcha para o Oeste, de modo que, com ferramentas teóricas, como o relativismo cultural e a análise crítica de poder, e metodológicas, como a etnografia e o engajamento comunitário, a antropologia oferece caminhos para compreender as dinâmicas locais, valorizar saberes tradicionais e propor soluções que integrem sustentabilidade ambiental, social e cultural.
A etnografia, por meio de observação participante e entrevistas, permite documentar práticas centrais à identidade de Aragarças. Trabalhar com ribeirinhos e indígenas para registrar métodos sustentáveis, como a pesca seletiva, pode informar políticas ambientais que protejam o rio, enquanto a documentação de lendas, em projetos como vídeos ou livros comunitários, promove a transmissão intergeracional de saberes e fortalece a autoestima cultural. Essas ações fornecem dados para práticas de conservação e engajam jovens na preservação da memória local.
O relativismo cultural legitima as práticas de Aragarças, evitando modelos de desenvolvimento que desrespeitem sua identidade local. Reconhecer saberes populares e ancestrais como possíveis soluções para desafios ambientais, como a restauração de áreas degradadas, assim incluir grupos marginalizados em projetos sustentáveis. Mediando diálogos entre pescadores, pecuaristas e turistas, a antropologia pode fomentar um turismo que respeite valores locais, reduzindo conflitos e promovendo diversidade cultural como base para a sustentabilidade.
A análise crítica de poder examina desigualdades, como a concentração de renda no turismo sazonal ou a exclusão de comunidades tradicionais pela pecuária extensiva, por exemplo. Investigar o turismo no rio Araguaia pode levar a modelos de turismo comunitário que redistribuam benefícios, enquanto a defesa da agroecologia contra o desmatamento promove equidade. Essas intervenções alinham desenvolvimento sustentável com a preservação cultural, sem reforçar hierarquias.
O engajamento comunitário cria soluções práticas. Oficinas de cultura popular, como danças de catira, conectam gerações, enquanto programas escolares de educação ambiental baseados em saberes tradicionais fortalecem a consciência ecológica. Cooperativas de turismo comunitário, com ribeirinhos guiando visitantes, geram renda sustentável e valorizam a cultura local. Essas iniciativas empoderam a comunidade e reforçam sua resiliência.
A antropologia também informa políticas públicas, colaborando com órgãos locais para regulamentar a proteção da cultura, do rio contra poluição e sobrepesca, com base em práticas tradicionais, ou incentivando festivais culturais sustentáveis que promovam turismo sem degradar o meio ambiente. A reflexividade ética garante que intervenções sejam co-construídas com a comunidade, evitando apropriações culturais e respeitando a autonomia de Aragarças.
Assim, a antropologia com sua análise crítica, engajamento e abordagem reflexiva, fortalece o desenvolvimento sustentável e a identidade cultural de Aragarças, garantindo que seu crescimento ocorra de forma equilibrada e respeitosa, sem comprometer suas raízes e sua pluralidade.
Adendo: "Identidade singular" é utilizado para destacar que, apesar da diversidade cultural presente em Aragarças, o resultado dessa interação forma uma identidade própria e única, diferente de outras regiões. Isso significa que, embora Aragarças compartilhe aspectos culturais com outras partes do Brasil, sua identidade é única por conta do modo particular como essas influências interagem, se adaptam e se transformam ao longo do tempo. Assim, a palavra "singular" reforça essa originalidade e autenticidade cultural.
Já a lenda do Boto faz parte do folclore local, difundida na região, conta que ele se transforma em um homem sedutor durante as festas, conquistando moças e depois retornando ao rio. Essa história é contada há gerações e reforça o vínculo cultural entre a população e o Araguaia.
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